Trabalho em lugar de lugar
(SNYDER, Gary. The Practice of the
Wild. San Francisco: North Point Press, 1990, 144-154, tradução de Leandro Durazzo)
O lugar é um tipo de lugar. Outra
coisa é o trabalho que realizamos, nosso chamado, nosso caminho de
vida. Ser membro de um lugar significa ser membro de uma comunidade.
Ser membro de uma associação de trabalhadores – seja ela uma
guilda, um sindicato ou uma ordem religiosa ou mercantil – é fazer
parte de uma rede. As redes permeiam as comunidades de acordo com sua
própria territorialidade, análogas às longas migrações de gansos
e falcões.
Metáforas de caminho e trilha vêm da
época em que as viagens eram realizadas a pé ou de carroça, quando
todo o mundo humano era uma rede de caminhos. Havia deles em todos os
lados: convenientes, gastos, limpos, às vezes até com postes ou
pedras marcando as distâncias, medindo os li, versts ou
yojana. Nas montanhas arborizadas ao norte de Quioto,
deparei-me com postes de pedra cheias de limo, quase perdidos na
densa vegetação dos bambuzais. Marcavam (vim a saber, muito tempo
depois) a rota por onde seguia o comércio de arenque seco, desde o
mar do Japão até a antiga capital. Existem trilhas famosas: a de
John Muir, no cume de High Sierra, a Natchez Trace, a
Rota da Seda.
Um caminho é algo que pode ser
seguido, que leva a algum lugar. “Linear.” Contra o que um
caminho se coloca? “Nãocaminho.” Fora do caminho, fora da
trilha. Então, o que é o caminho? De algum modo, todas as outras
coisas estão fora dele. A inexorável complexidade do mundo está
fora, à margem da trilha. Para caçadores e pastores, as trilhas nem
sempre foram muito úteis. Para um caçador-coletor, o caminho não
é onde se caminha por muito tempo. Ervas selvagens, bulbos de
camásia, codornas e tinturas vegetais estão longe das vias. Todas
as coisas que satisfazem nossas necessidades estão fora do caminho.
Precisamos vaguear por aí para conhecer e memorizar o campo –
tortuoso, acidentado, desgastado, sulcado, irregular (enrugado como o
cérebro) – guardando o mapa na mente. Esse é o exercício de
visualização-econômico-meditativa dos Inupiaq e Athapaskan do Alaska,
até hoje. Para o caçador-coletor, o trajeto batido não oferece nada de
novo, e se corre o risco de voltar para casa de mãos abanando.
No imaginário da mais antiga civilização agrícola, a China, o caminho ou a estrada têm ocupado um espaço particularmente importante. Desde os primeiros dias da civilização chinesa, processos práticos e naturais têm sido descritos em termos de caminho ou via. Tais conexões são explícitas no enigmático texto chinês que parece ter reunido toda a sabedoria popular antiga, reinserindo-a na história – o Dao De Jing, “O Clássico do Caminho e do Poder”. A própria palavra dao significa rumo, estrada, trilha ou conduzir/seguir. Filosoficamente, significa a natureza e curso da verdade. (A terminologia taoísta foi adotada pelos primeiros tradutores budistas chineses. Ser um budista ou um taoísta, assim, é ser uma “pessoa do caminho”.) Outra extensão do sentido de dao é a prática de uma arte ou ofício. Em japonês, dao pronuncia-se do – como em kado, “o caminho das flores”, bushido, “caminho do guerreiro”, ou sado, “cerimônia do chá”.
Em todas as artes e ofícios tradicionais há o costume do aprendizado. Meninos e meninas de mais ou menos quatorze anos tornavam-se aprendizes de um oleiro, ou de uma sociedade de carpinteiros, tecelões, tintureiros, boticários, metalúrgicos, cozinheiros e assim por diante. Os jovens deixavam seus lares para viver e dormir nos fundos da olaria, recebendo como única tarefa a mistura da argila por, digamos, três anos, ou a tarefa de amolar o cinzel por três anos, no caso dos carpinteiros. Era, normalmente, desagradável. O aprendiz precisava se submeter às idiossincrasias e mesquinharias do professor, sem reclamar. Era sabido que o professor testaria a paciência e força de vontade do aprendiz, incessantemente. Não se podia pensar em voltar atrás, mas apenas aceitar a situação, dedicar-se a ela e não ter outros interesses. Para um aprendiz, havia apenas este único estudo. Então, ele era gradualmente conduzido a algumas mudanças não tão óbvias, bases do ofício e técnicas secretas do trabalho. Também começava a experimentar – de súbito, em dado momento – o que significava ser “uno com seu trabalho”. O estudante espera não apenas aprender as mecânicas da profissão, mas absorver algo do poder de seu professor, o mana – um poder que ultrapassa qualquer entendimento ou habilidade ordinários.
No livro Zhuang-zi (Chuang-tzu), um texto taoísta radicalmente mordaz, do século III aC, mais ou menos um século posterior ao Dao De Jing, há diversas passagens referentes a ofícios e destreza em realizá-los:
O cozinheiro Ting retalhou um boi para o Senhor Wenhui, com a graciosidade e a leveza de um bailarino. “Acompanho a constituição natural, atinjo os grandes vazios, guio a lâmina pelos espaços abertos e sigo as coisas como elas são. Assim, jamais toco sequer o menor ligamento ou tendão, quanto mais uma grande articulação... Carrego esta faca há dezenove anos, já cortei milhares de bois com ela e, ainda assim, sua lâmina é boa como se tivesse acabado de ser amolada. Existem espaços entre as juntas, e a lâmina da faca não é nada grossa. Se você insere o que não tem grossura em tais locais, então há uma imensidão de espaço livre... É por isso que, mesmo após dezenove anos, a lâmina de minha faca continua afiada como se fosse recém-chegada da pedra de amolar.” “Excelente!”, disse o Senhor Wenhui. “Ouvi as palavras do cozinheiro Ting e aprendi como ser prudente para com a vida!”
Watson, 1968, 50-51
Tais histórias não são apenas uma ponte entre o prático e o espiritual, mas também nos provocam com o vislumbre de como alguém pode atingir a realização total ao dedicar toda a vida a um trabalho.
A relação ocidental com as artes – desde a ascensão da burguesia, se preferirmos – é a de subestimar esse aspecto da realização, compelindo qualquer um a fazer coisas sempre novas. Essa atitude sobrecarrega consideravelmente os trabalhadores de cada geração, colocando sobre seus ombros uma carga redobrada, já que eles pensam que é necessário descartar o trabalho da geração anterior e fazer algo supostamente melhor e diferente. A ênfase na perícia com as ferramentas, na prática repetitiva e no treinamento tem se tornado bastante menosprezada. Em uma sociedade que segue a tradição, a criatividade é vista como algo imprevisível, que surge quase por acidente, sendo um dom de apenas poucos indivíduos. Ela não pode ser programada em um currículo. É melhor em pequenas quantidades. Devemos ser gratos quando ela surge, mas não devemos contar com isso. Desse modo, quando a criatividade de fato aparecer, será a coisa verdadeira. Para um estudante-aprendiz a quem foi dito por oito anos “faça sempre o que já foi feito antes”, como na produção tradicional de cerâmica, inventar uma nova forma de trabalhar exige um estímulo poderoso. O que acontece, então? Os veteranos na tradição olham e dizem “Ah! Você fez algo novo! Legal!”.
Quando os mestres artesãos chegam aos quarenta e poucos, começam eles próprios a aceitar aprendizes a quem ensinar suas técnicas. Eles também podem se dedicar a alguns outros interesses (um pouquinho de exercícios de caligrafia), partir em peregrinações, ampliando suas áreas de atuação. Se houver algo a mais (e, estritamente falando, não é necessário que haja: o domínio de artes e ofícios e a produção de peças impecáveis que refletem o melhor de suas tradições é, certamente, suficiente para uma única vida), esse algo será a realização final “para além do treinamento”, em que o esforço sozinho não é garantia de sucesso. Há um ponto para além do qual o treinamento e a prática não são capazes de levar. Zeami, o insuperável dramaturgo e diretor de teatro nô do século XIV, que era também um sacerdote Zen, referia-se a esse momento como “surpresa”. É a surpresa de alguém descobrindo que não é necessário ser alguém, sendo uno com seu trabalho, movendo-se com disciplinada leveza e graça. Sabe-se o que é ser uma porção de argila girando na olaria, ou um espiral de madeira pura e branca na lâmina de um cinzel – ou uma das muitas mãos de Kannon, a Bodhisattva da compaixão. Neste ponto, é possível ser livre: com o trabalho e do trabalho.
Não importa quão humilde seja em status social, o trabalhador habilidoso possui orgulho e dignidade – e sua habilidade é necessária e respeitada. Não se deve tomar isso como qualquer justificativa para o feudalismo: é simplesmente a descrição de uma perspectiva sobre como as coisas funcionavam em tempos antigos. A mística de ofício-e-treinamento extremo oriental, eventualmente, atingiu todos os rincões da cultura japonesa, desde o preparo de macarrão (no filme Tampopo), passando pelo setor de negócios até as artes mais refinadas. Um dos vetores dessa dispersão foi o budismo Zen.
Zen é o mais claro exemplo da tradição de “auto-poder” (jiriki) no budismo Mahayana. Sua forma de vida comunitária e disciplina é muito semelhante a um programa de aprendizado em uma arte tradicional. As artes e ofícios há muito tempo admiram o treinamento Zen como modelo de ensino rígido, sóbrio e digno. Vou descrever minha experiência como koji (adepto leigo) no mosteiro Daitoku-ji, um templo da seita Zen Rinzai, em Quioto, nos anos sessenta. Sentávamos de pernas cruzadas, em meditação, no mínimo cinco horas por dia. Nos intervalos, todos executavam tarefas físicas – jardinagem, preparação de conservas, corte de lenha, limpeza de banheiros, turnos de trabalho na cozinha. Havia entrevistas com o professor, Oda Sesso Roshi, pelo menos duas vezes ao dia. Nessas ocasiões era esperado que apresentássemos nosso entendimento sobre o koan que nos fora dado anteriormente.
Esperava-se que memorizássemos certos sutras e conduzíssemos alguns pequenos rituais. A vida diária era levada de acordo com uma etiqueta e vocabulário francamente arcaicos. Um rígido cronograma de meditação e trabalho abarcava ciclos semanais, mensais e anuais de cerimônias e observâncias que remontavam à China da dinastia Song e, em parte, à Índia do tempo de Shakyamuni. O sono era pouco, a comida era escassa, os dormitórios, frugais e gelados, mas naquele tempo (nos anos sessenta) isso também era verdade para os trabalhadores e fazendeiros fora do mosteiro.
(Os noviços eram instruídos a deixar suas vidas passadas para trás, tornando-se focados e ordinários em tudo, exceto na intenção de adentrar a passagem estreita da concentração em seus koan. Hone o oru, como diz o ditado – “quebre os ossos”, uma frase também utilizada (no Japão) pelos trabalhadores, nos salões de artes marciais, nos esportes modernos e no montanhismo.)
Também trabalhávamos com o auxílio de leigos, normalmente fazendeiros, de modo absolutamente sociável. Ficávamos com eles nas hortas, conversando sobre tudo, desde novas espécies de sementes e jogos de beisebol até funerais. Havia marchas mendicantes a cada semana, através das ruas da cidade e das estradas, cantando e caminhando juntos, com os rostos escondidos sob um grande chapéu de vime (impermeabilizado e tingido de marrom com sumo de caqui). No outono, a comunidade realizava viagens de mendicância especiais, atrás de rabanetes e arroz, por regiões rurais que ficavam a três ou quatro colinas de distância.
Mas, a despeito de toda a regularidade, o cronograma monástico podia ser quebrado em eventos especiais. Em certa ocasião, todos viajamos de trem para um templo pequeno mas encantador, no interior, onde centenas de monges se reuniram para a celebração dos exatos quinhentos anos de sua fundação. Nosso grupo foi designado para a cozinha: foram dias de trabalho, cortando, cozinhando, lavando e ajeitando tudo ao lado das esposas dos fazendeiros do distrito. Quando o banquete foi servido, nós éramos os garçons. Naquela noite, depois que as centenas de convidados tinham ido embora, os cozinheiros e os trabalhadores tiveram seus próprios banquete e festa, com velhos fazendeiros e suas esposas compartilhando danças e canções divertidas com os monges Zen.
Liberdade no Trabalho
Durante um dos longos retiros de meditação, chamados de sesshin, o Roshi palestrou sobre a frase “O caminho perfeito é sem dificuldades. Esforce-se!” Este é o paradoxo fundamental do caminho. Podemos ser convocados a não poupar nem mesmo nossos ossos na intensidade empenhada, mas ao mesmo tempo não podemos perder de vista que o caminho, por si mesmo, não impõe obstáculos, havendo a sugestão de que o esforço pode nos extraviar. O mero esforço pode acumular aprendizado, poder ou realização formal. Habilidades inatas podem ser fomentadas através de disciplina, mas apenas esta não garante que se alcance o território do “vaguear livre e levemente” (um termo de Zhuang-zi). Ninguém deve se vitimizar pela propensão à autodisciplina ou ao trabalho duro. Talentos menores podem conduzir ao sucesso nos negócios ou ofícios, mas com isso perde-se a oportunidade de descobrir o que habilidades mais prazenteiras poderiam ter sido. “Estudamos o ego para esquecer o ego”, diz Dogen. “Ao esquecer o ego, você torna-se uno com as dez mil coisas.” Dez mil coisas se referem a todo o mundo dos fenômenos. Quando estamos abertos, tal mundo pode nos ocupar.
Ainda assim, somos confrontados pelo fenômeno curioso do complexo ego humano, necessário, mas excessivo, que resiste a deixar o mundo entrar. A prática da meditação nos oferece um modo de atenuar esse ego, tocando-o de raspão, pela tangente. O objetivo do koan é oferecer ao estudante um tijolo com o qual bater na porta, para atravessá-la e ir além dessa primeira barreira. Há vários koans que se direcionam mais profundamente à forma não-dualista de ver e ser – tornando o estudante apto (como quereria a tradição) a ser absolutamente atento, gracioso, grato e hábil em sua vida diária; indo além da dicotomia entre natural e “laborado”. De certo modo, essa é uma prática de “uma arte de vida”.
O próprio Dao De Jing nos dá a interpretação mais sutil do que pode ser entendido por caminho. Ele começa dizendo: “O curso que pode ser percorrido (‘cursado’) não é o curso constante.” Dao ke dao fei chang dao. Primeira linha, primeiro capítulo. O que isso nos diz é: “Um caminho que pode ser seguido não é um caminho espiritual.” A realidade das coisas não pode ser confinada a uma imagem tão linear quanto à de uma estrada. O objetivo do treinamento só pode ser atingido quando o “adepto” tiver sido esquecido. O caminho não tem dificuldades – ele próprio não nos impõe obstáculos; ele é desimpedido em todas as direções. Nós, entretanto, acabamos seguindo nossa própria trilha – então o Velho Mestre diz “Esforce-se!”.
Também há professores que dizem: “Não se esforce para provar nada a si mesmo, é uma perda de tempo. Seu ego e intelecto ficarão em seu caminho. Deixe que todas essas aspirações ilusórias desapareçam.” Eles diriam, neste exato momento: apenas seja a mente que lê esta palavra e a entende, sem esforço – e você terá compreendido a Questão Fundamental. Essa é a orientação de Ramana Maharshi, Krishnamurti e do mestre Zen Bankei. É a versão de Alan Watts sobre o Zen. Há toda uma escola de budismo que assume essa posição – Jodo Shin, ou budismo da Terra Pura, que o velho e distinto Morimoto Roshi (que falava o dialeto de Osaka) dizia ser “a única escola de budismo capaz de repreender o Zen.” E pode repreendê-lo, ele dizia, por se esforçar demais, por se considerar muito especial, por ser orgulhoso. É preciso ter respeito pela simplicidade desse ensinamento e por sua profunda precisão. O budismo Terra Pura é o mais sincero. Ele resiste resolutamente a todos os projetos de auto-aperfeiçoamento e se mantém apenas pelo tariki, que significa “outro-poder”. O “outro” que pode oferecer auxílio é mitologicamente descrito como sendo “Buda Amida”. Ele não é nada senão “vacuidade” – a mente sem concepções ou intenções, a mente-Buda. Em outras palavras: “Desista de aprimorar a si mesmo, deixe seu verdadeiro eu ser seu eu.” Esse ensinamento é frustrante para pessoas determinadas, já que nenhuma instrução real é oferecida ao desafortunado buscador.
Sempre houve, também, incontáveis Bodhisattvas que não seguiram qualquer treinamento espiritual formal nem buscas filosóficas. Eles foram formados e amadureceram em meio à confusão, sofrimento, injustiça, promessas e contradições da vida. São os altruístas, generosos, valentes, compassivos, humildes e ordinários resistentes que sempre mantiveram a família humana unida.
Existem caminhos que podem ser seguidos e há um que não pode – que não é um caminho, mas a selva. Há um “ir”, mas ninguém que vai. Nenhum destino, apenas o campo total. A primeira vez que tropecei para fora da trilha foi nas montanhas do Noroeste Pacífico, aos vinte e dois anos, enquanto trabalhava como vigia de incêndios em North Cascades. Então, decidi que estudaria o Zen no Japão. Tive um novo vislumbre dessa sensação enquanto olhava para o corredor de uma biblioteca em um templo Zen, aos trinta anos, e isso me ajudou a entender que eu não deveria viver como um monge. Mudei-me para perto do mosteiro e participei das meditações, cerimônias e trabalho nas plantações como um praticante leigo.
Voltei à América do Norte em 1969, com minha então esposa e meu primogênito, e logo mudamos para Sierra Nevada. Para além do trabalho no campo, com as árvores e com a política, meus vizinhos e eu tentamos manter alguma prática budista formal. Deliberadamente, mantivemos isso em um nível leigo e não-profissional. O mundo Zen japonês dos últimos séculos se tornou tão especializado e profissional, no que diz respeito ao treinamento correto, que perdeu boa parte da capacidade de se surpreender. Os sinceros, dedicados e benevolentes sacerdotes Zen do Japão defenderão seu papel de especialistas dizendo que as pessoas comuns não atingem os pontos centrais dos ensinamentos porque não dedicam tempo suficiente para isso. Mas isso não precisa ser um impedimento para praticantes leigos, que podem se aplicar a suas práticas budistas do mesmo modo que qualquer trabalhador, artesão ou artista se aplica a seu trabalho.
A estrutura da ordem budista original foi inspirada pelo governo tribal da nação Shakya (“carvalho”), uma pequena república – parecida com a Confederação Iroquesa – que dispunha de regras democráticas de votação (Gard, 1949; 1956). O Buda Gautama nasceu como um Shakya – daí seu nome Shakyamuni, “sábio dos Shakyas”. A sangha budista, assim, é modelada segundo formas políticas de uma comunidade derivada do neolítico.
Então, nossos modelos de prática, treinamento e dedicação não precisam se restringir a mosteiros ou educação vocacional, mas também podem olhar para comunidades antigas, com suas tradições de trabalho e partilha. Existem aprendizados que somente podem ser compreendidos a partir de formas não-monásticas de trabalho, família, amor, fracasso. E há todas as conexões ecológico-econômicas dos humanos com outros seres vivos, impossíveis de serem ignoradas por muito tempo, que nos levam a um profundo entendimento sobre plantação, colheita, criação e abate. Todos somos aprendizes da mesma professora com quem as instituições religiosas originalmente trabalharam: a realidade.
O discernimento da realidade exige que se tenha uma noção imediata de política e história, um controle sobre o próprio tempo: domine as vinte e quatro horas. Faça-o bem, sem autocomplacência. Aprontar as crianças a tempo de pegar o ônibus da escola é tão duro quanto entoar sutras no salão do Buda em uma manhã gelada. Uma coisa não é melhor que a outra, ambas podem ser bastante tediosas e têm a virtuosa qualidade da repetição. Repetição, ritual e seus bons frutos surgem em inúmeras formas. Trocar o filtro, limpar o nariz, ir a encontros, ajeitar a casa, lavar louça, checar o óleo do carro – não pense que essas coisas o distraem de seus objetivos mais sérios. O trabalho doméstico não é um conjunto de problemas dos quais devemos nos livrar na esperança de que poderemos, enfim, realizar a “prática” que nos colocará no “caminho” – ele é nosso caminho. Pode ser a própria realização, também, para aqueles que prefeririam colocar a iluminação contra uma não-iluminação, atribuindo a cada qual sua própria e completa realidade, sua própria e completa ilusão. Dogen gostava de dizer que “a prática é o caminho”. É fácil compreender isso quando vemos que o “curso perfeito” não é um caminho que nos leva até um ponto facilmente definido, a algum objetivo que está no final de uma progressão. Montanhistas escalam picos pela vista que têm de lá, pela cooperação e camaradagem, pelo desafio extremo – mas, sobretudo, porque escalar os coloca lá fora, onde o desconhecido acontece, onde se encontra a surpresa.
A pessoa verdadeiramente experiente, refinada, se compraz com o ordinário. Tal pessoa considera o trabalho entediante de uma casa ou escritório tão cheio de desafio e alegria quanto qualquer metáfora de montanhismo poderia sugerir. Eu diria que o divertimento real está na ação de seguir totalmente fora da trilha – longe de qualquer traço de regularidade, humana ou animal, que aponte algum propósito prático ou espiritual. Parte-se para a “trilha que não pode ser seguida”, que conduz a todo e nenhum lugar, um campo de infinitas possibilidades, milhões de graciosas variações sobre os mesmos temas, mas onde cada ponto é único. Cada seixo na ribanceira é diferente, nenhuma folha do abeto é igual à outra. Como poderia uma parte ser mais central, mais importante que qualquer outra? Ninguém jamais vai se deparar com o ninho de um metro do rato do mato, feito de gravetos, pedras e folhas, se não se enfiar nos arbustos de manzanita. Esforce-se!
Nós sentimos certo conforto e tranquilidade em nossa casa, perto da lareira e nos caminhos próximos. É aí que também encontramos o tédio das tarefas diárias e o ranço dos afazeres triviais. Mas a regra da impermanência diz que nada se repete por muito tempo. A efemeridade de todas as nossas ações nos coloca em um tipo de selva-no-tempo. Vivemos em redes de processos inorgânicos e biológicos que nutrem tudo, agitando rios subterrâneos ou cintilando como teias de aranha no céu. Vida e matéria brincando, fria e cruamente, de forma arriscada e saborosa. Isso é de uma ordem mais ampla do que os pequenos enclaves de ordem provisória a que chamamos caminhos. Isso é o Caminho.
Nossas habilidades e trabalhos não são nada além de pequenos reflexos do mundo selvagem que é inata e amplamente ordenado. Não há nada comparado a pisar fora da estrada e encontrar uma parte nova da bacia hidrográfica. Não pela novidade, mas pelo sentimento de estarmos voltando para casa, para a totalidade do terreno. “Fora da trilha” é outro nome para o Caminho, e passear fora da trilha é a prática da selva. Também é onde – paradoxalmente – nós fazemos nosso melhor trabalho. Mas temos necessidade de caminhos e trilhas, e sempre os manteremos. Você primeiro precisa estar no caminho antes de se virar e adentrar a selva.
REFERÊNCIAS
GARD, Richard. Buddhist Influences on the PoliticalThought and1nstitutions of India and Japan. Phoenix Papers, no. 1. Claremont, 1949.
_____. Buddhist Political Thought. Bangkok: Mahamukta University, 1956.
WATSON, Burton (trans.). The Complete Works of Chuang Tzu. New York: Columbia University Press, 1968.