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sexta-feira, 29 de maio de 2015

soluções tradutórias: o buda da luz infinita, amituofo. ou omito fo? questão de autodeterminação dos povos

É sabido que os caracteres chineses possuem uma fonética própria, difícil de transcrever – e mesmo visualizar – em línguas ocidentais. Por isso tem havido, ao longo da história, diferentes maneiras de tentar tal aproximação. A mais comum ao longo de todo o século XX foi a chamada Wade-Giles, que perdeu a primazia assim que a República Popular da China, a continental, instituiu o método Pinyin na década de 1950.

Brevíssima história política chinesa: República Popular da China (continental) e República da China (Taiwan) têm/tiveram um processo de relações diplomáticas muito conturbado por todo o século XX, pelo menos. Foi para Taiwan que correram os nacionalistas de Chiang Kai-shek depois da derrota para os comunistas na guerra civil das décadas de 1920 e 1930, depois também da invasão japonesa de 1937. Assentada em Taiwan, a República da China, ainda hoje não reconhecida no cenário político internacional como um Estado-nação de direito, possui entre suas características mais marcadas uma autoconsciência com relação a essa herança cultural chinesa (sua população é, etnicamente, 95% Han, descendente da China) e uma postura política e identitária muito própria. Por mais que os laços entre Taiwan e China estejam se estreitando e se tornando mais amenos nos últimos anos, os dois países, ainda assim, mantêm divergências consideráveis de comportamento nacional – e ideológico-nacional.

Aqui entra a questão linguística. Os sistemas de transcrição fonética quase sempre tiveram em conta o grande histórico documental da China continental, até pela presença mais massiva de fontes e contatos dos exploradores (aqui, significando suas duas acepções de desbravamento e exploração) com o continente. Quando a República Popular instituiu o sistema Pinyin, portanto, em 1958, Taiwan continuou utilizando seu próprio método de transcrição. Que, verdade seja dita, é uma bagunça sem qualquer padrão.

Mas o governo de Taiwan decretou o Pinyin como oficial para a ilha da República da China, no ano de 2009. De lá para cá, pelo menos oficialmente, podem estar havendo esforços de padronização da maior parte dos documentos institucionais e oficiais, do governo e de grandes instituições. Mas a prática comum, mais popular e mesmo seguida pelas oficialidades, ainda em boa parte dos casos, é o padrão antigo de Taiwan, que mescla sistemas fonéticos e inventaria novas possibilidades.

Quando me comunico com chineses e/ou taiwaneses1 budistas, a saudação de despedida – ou de encontro breve – é um ubíquo 阿弥托佛. Palmas das mãos unidas, curta reverência, e este é o nome do Buda Amida que se utiliza como bênção e cumprimento. Mas 阿弥托佛 é transcrito, em Pinyin, como Amituofo, forma aproximada de sua pronúncia. Esse é o padrão oficial da China continental e de Taiwan, que agora o segue.

Mas os budistas de Taiwan não escrevem Amituofo. Quando utilizam o sistema de transcrição, Taiwan quase sempre me saúda com Omito Fo! As mesmas palavras, 哦弥陀佛, a mesma saudação, talvez o mesmo sentimento de compaixão, bênção e transferência de méritos, mas certamente dois horizontes mentais completamente diferentes com relação a política – e a políticas linguísticas.

Taiwan tem uma resistência no que diz respeito à política linguística do continente não apenas em sua transcrição fonética (o sistema fonético nativo de Taiwan, na verdade, nem chega a usar o alfabeto ocidental para transcrever suas palavras, mas uma série de códigos fonéticos completamente distintos), mas também com relação a sua simplificação de caracteres. A República Popular da China (continental) simplificou diversos caracteres desde as décadas de 1950 e 1960, reduzindo consideravelmente seu número de traços e complexidade – também beleza estética – visal. Taiwan, assim como Macau, Hong Kong e outros países com significativa população chinesa, como Cingapura, mantêm os caracteres tradicionais. Um exemplo: porta,門, se tornou 门. A mesma palavra, o mesmo caractere, o(s) mesmo(s) sentido(s), outra escrita.2

Taiwan resiste a isso, e não escreve seu Buda Amida, sua saudação, seu 阿弥托佛, como Amituofo. Depois de anos trocando e-mails em que meus interlocutores se despediam dizendo Omito Fo!, enquanto eu respondia Amituofo!, cheguei a uma conclusão alarmante: a despeito de minha intenção de distanciamento político e polêmico, eu estava sempre tomando o partido da China continental! Digo, oficialmente eu não estava sendo um expansionista afeito ao imperialismo da República Popular, já que o governo de Taiwan reconhece o Pinyin como seu método padronizado, mas ainda assim... quando todos os meus interlocutores, instrutores, mestres, irmãos no Dharma e colegas de prática me saudavam – e saúdam – com Omito Fo!, que direito (linguístico-político) tenho eu, um antropólogo brasileiro, de sobrepor à sua autodeterminação a minha própria consciência oficial de estar escrevendo no sistema fonético “certo”? Nenhum direito.

Omito Fo!



Notas:

1 Vale notar que os taiwaneses pertencentes à etnia Han se autoidentificam como chineses. Parte disso se deve ao fato de os taiwaneses, enquanto tal, serem uma etnia diferente com sua própria língua (ou dialeto) e padrões culturais diversos daqueles herdados pelos taiwaneses Han.

2 Por questões microsoft-técnicas, mesmo 阿弥托佛 está grafado aqui em sua versão simplificada. O Buda da Vida e da Luz Infinitas, tradicionalmente, surge como 阿彌陀佛.

quinta-feira, 14 de março de 2013

soluções tradutórias: ainda a amabilidade

Encontrei, na tradução para o inglês de um dos textos mais tradicionais do budismo clássico (o Ekottara Agama, preservado em chinês), a passagem que segue – ainda sobre a tal da “bondade amorosa”: 

"Now, Rāhula, you should cultivate friendliness (maitrī) in your heart." (aqui: http://santifm.org/santipada/2010/ekottara-agama-17-1/)

E friendliness, em português, pode ser traduzida por afabilidade, cuja definição dicionarizada é: 

"Cortesia benévola aliada a franqueza; delicadeza, trato lhano." (aqui: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=afabilidade)

Esta tradução é de Bhikkhu Sujato, um monge australiano. Imagino que sua familiaridade com o inglês, língua materna, tenha permitido essa interpretação de maitri tão próxima da que eu sugeri, poucos posts atrás.

sexta-feira, 8 de março de 2013

soluções tradutórias: prajñā profunda ou transcendental?

Prajñā, em sânscrito, é uma das paramitas presentes no budismo. O termo significa sabedoria, entendimento, acuidade cognitiva. Costuma ser traduzido por sabedoria profunda ou sabedoria transcendental

Eu, de minha parte, prefiro sabedoria profunda. Quando se coloca o adjetivo transcendental, existe uma grande chance de que a compreensão de prajñā seja influenciada por noções metafísicas, atrelando a sabedoria a algum tipo de conhecimento supramundano. É o perigo de dar ao budismo e à iluminação uma característica de filosofia perene (gnosticamente falando) que foge à sua natureza filosófica. 

domingo, 3 de março de 2013

soluções tradutórias: mente ou coração?

se eu traduzo um contexto negativo de 心 por mente, quero dizer que ela é confusa, que os pensamentos me perturbam, que o turbilhão de correntes lógicas, linguísticas, imagéticas e sonoras não param de me assaltar a cabeça.

se traduzo um contexto negativo de 心 por coração, quero dizer que ele é triste, angustiado, aflito, com sentimentos que me assolam, com pessimismos que me deprimem, com raivas ou orgulhos que me preenchem o peito.

Duas concepções bem diferentes para esse discurso, não?

sábado, 2 de março de 2013

soluções tradutórias: chão da mente?

Um colega e irmão no Dharma me perguntou como eu traduziria cittabhumi (sânscrito, normalmente traduzido como chão da mente). Em chinês, 心地, o termo apresenta os caracteres mente/coração (心) e terra/solo/base (地).

Daí que a tradução mais comum parece ser (em mais uma literalidade sem sentido) chão da mente (aqui: http://budadharma.paginas.sapo.pt/sutra_rede.htm)

Mas a ideia de um chão da mente, de uma base que sustente e unifique o substantivo - em malabarismos filosóficos que no momento não nos interessam - faz com que a unidade se divida em dois elementos, justamente os dois substantivos da expressão comumente traduzida (novamente, ao que parece, pelo caminho inglês de mind-ground).

Como em bondade amorosa (tradução corrida de loving-kindness), chão da mente divide a unidade do substantivo aglutinado que o hífen inglês emulava. Neste caso agora, tanto pior: a colocação da preposição de (chão da mente) faz parecer que são mesmo duas coisas separadas, ou algum elemento parcial de uma totalidade. Justamente o contrário do que se pretendia com cittabhumi, supomos:
The early Buddhist thinkers emphasised the unitary nature of the mind. The Sarvastivadins in order to explain the unity of the mind described the mind as a ground or base which they called Cittabhumi. They rejected the realm of unconsciousness, alaya-vijnana, postulated by theYogacarins of Mahayana Buddhism who believed that from the realm of unconsciousness arose the conscious mind and the objects. (http://en.wikipedia.org/wiki/Cittabhumi)
Daí que eu respondi que traduziria, concordando com a proposta de meu amigo, simplesmente como mente. Talvez com o título do capítulo explicitando - uma única vez - "A mente como base para o Bodhisattva", e todas as acepções seguintes sendo mente, e só.

(Solução que é a do dicionário de termos budistas chineses, aliás:

心地 Mind, from which all things spīng; the mental ground, or condition; also used for 意 the third of the three agents-body, mouth, mind. (http://mahajana.net/texts/kopia_lokalna/soothill-hodous.html)

tanto mais pertinente quanto sua tradução venha de uma fonte chinesa, e não indiana)

soluções tradutórias: bondade amorosa e amabilidade

maitri (do sânscrito; metta em páli), uma das mentes ilimitadas, das dez paramitas, 慈 (cí) em chinês, que lusófonos têm mania de traduzir por "bondade amorosa" (vertendo ao pé da letra a "loving-kindness" da opção inglesa), e que categoricamente não significa nada em português, tem uma ótima alternativa: amabilidade.

(com uma menção honrosa para gentileza)