quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

transliteração fonética e pós-humanidade: o caso do Buda

A história atual da China viu surgir uma renovação em seu budismo. A partir do começo do século XX, monges/intelectuais/ativistas como Taixu, Yinshun e Hsing Yun – apenas para citar os mais destacados – passaram a reorientar a doutrina religiosa que vinha sendo, ao longo da história chinesa, pautada por preocupações metafísicas e postmortem.

Deu-se, então, um passo para a nova denominação do budismo chinês: budismo para a vida humana (人生佛教, rénshēng fójiào ); budismo para o reino humano; budismo humanista ou, na sugestão tradutória do professor Dr. Joaquim Monteiro, budismo antropocêntrico (estes três tendo por fonte a mesma expressão chinesa, 人间佛教, rénjiān fójiào ).

Muito resumidamente, essa seria uma reorientação da doutrina budista para suas origens, com o Buda Shakyamuni, o histórico de 2500 anos atrás. Budismo humanista/antropocêntrico/para o reino humano enfatizaria – e enfatiza – a postura, conduta e disposição ética e prática nesta vida, com todas as suas relações sociais e interpessoais incontornáveis. Não haveria, portanto, o foco anterior nas questões de renascimentos, deuses, infernos ou o que seja.

Mas - e aqui é apenas uma consideração genérica e ainda pouco fundamentada -, o termo em chinês para buda é 佛 (). Vamos à busca de uma etimologia:

Buda, o Desperto, vem da raíz em sânscrito budh-, raíz justamente de despertar, tomar consciência. É um epíteto, não um nome próprio (daí que o Buda se iluminou sentado sob a árvore bodhi, a árvore da iluminação – uma planta da família das figueiras).


Pois bem. O chinês costuma transliterar foneticamente os nomes indianos, porque é praticamente impossível para um chinês pronunciar os fonemas do sânscrito. Assim, o Buda Shakyamuni se torna Shijiamoni Fo (释迦摩尼佛, que já rendeu um pequeníssimo continho aqui, ó: http://oscarasdoclube.blogspot.pt/2010/08/o-mi-to-fo.html), com o sendo, como já mencionado, buda.

O que me soa muito estranho é que não se parece em nada, foneticamente, com buda (ou buddha). E o mais curioso é analisar o caracter para essa palavra: 佛.

Ele é formado por dois elementos: o radical – que, diferente do sânscrito, não tem nada de desperto, mas é o caracter para - homem (人) e um segundo elemento, fonético como costumam ser as construções ideogrâmicas chinesas: (ou fó, 弗). 

O mais interessante, que me motiva a escrever este post, é que 弗 é um advérbio de negação, o que etimologicamente tem lá seu sentido – quando se ilumina, um buda deixa de ser um homem comum e passa a ser um homem desperto, um não-homem, portanto, um pós-homem – mas também tem um possível sentido inverso ao que propõe a tradição e o budismo humanista. 

Esse sentido inverso, garimpado do caracter chinês, diria que um buda não é humano, aproximando-o de uma possível noção metafísica estranha à tradição original. Tanto mais, penso, quanto a tradução chinesa é tão distante das típicas transliterações fonéticas. Mas, lembrem-se, estou apenas conjecturando.

Nenhum comentário:

Postar um comentário