quarta-feira, 8 de maio de 2013

menos que um: elizabeth bishop, poema-aula e paulo henriques britto

Acordei com um poema e uma tradução em minha caixa de mensagens. São os que seguem. Elizabeth Bishop (que viveu muito tempo no Brasil e chegou no país pelo porto de Santos, minha cidade) fala sobre a perda, o perder e a relação com isso. Um tema que me interessa muito, diga-se.

A tradução era de Paulo Henriques Britto, grande tradutor de quem eu recomendo A tradução literária. Coloco aqui, como de costume, o original e a tradução, ambos depois da tradução que arrisquei.

Porque arrisquei, mesmo, considerando o tanto de ritmo específico e rimas constantes que esse poema tem. As soluções de minha tradução, se comparadas com a profissional de Paulo, são quase completamente diferentes. Desde as terminações até a estrutura rítmica dos versos. Mas cá está, espero que aceitável.


Uma arte

A arte da perda é fácil estudo;
tanta coisa é perdida e se basta
que nada nunca é o fim do mundo.

Perca um tanto, todo dia. Aceite o luto
pelas chaves de casa, a hora mal gasta.
A arte da perda é fácil estudo.

Então perca mais, e mais rápido:
lugares, nomes, o voo e a escala
pra onde, mesmo? Nada é o fim do mundo.

Perdi o relógio da mãe. E tudo
das últimas três casas que gostava.
A arte da perda é fácil estudo.

Perdi belas cidades, rios graúdos,
uns reinos, continente, terra vasta.
Perdi, mas não foi nada o fim do mundo.

- Mesmo te perder (a voz, o riso surdo
que eu amo) seria nada. Vai, anota:
a arte de perder é fácil estudo
mesmo que pareça o fim do mundo.



The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.


Uma Arte

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia.Aceite,austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte da perda não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

(tradução de Paulo Henriques Britto)


terça-feira, 7 de maio de 2013

menos que um: dorothy parker, anti-suicídio e minha guia

Uma amiga zelosa que muito gosta de mim, experientíssima em tradução - currículo invejável, digo logo -, me apresentou Dorothy Parker e um seu poema, Resumé. Disse ela - a amiga, não a autora - que já tentara traduzir esses versos mas não tinha ficado satisfeita. Eu, como bom atravessador que sou, resolvi tentar. Espero que satisfaça pelo menos um pouco.

Logo de partida sua poesia me pareceu uma anti-poesia da experiência. É como se ela pegasse, pelo menos nesse resumé, Sylvia Plath, Anne Sexton, John Berryman (de quem traduzi uns poemas, alguns Dream Songs, que esperam por publicação através da nossa querida amiga, professora, poetisa e ser paranormal, Lucila Nogueira), todo o martírio e o solilóquio vivencial do suicídio e risse da cara dele. Anne Sexton tem um tanto disso, também, mas ainda assim...

Daí que Dorothy me pareceu muito agradável, especialmente pelo ritmo de seu resumo: é o mesmo ritmo que ouvimos cantarolado por crianças no caminho da escola, quando o menino mais velho e/ou mais esperto importuna o menor até esgotar o fôlego. Uma cantiga de escárnio infantil, que tentei reproduzir, com seu tom leve e ritmado, com seu desfecho irônico-superior.


Resumé

Lâminas te doem;
Rios são um tanto úmidos;
Ácidos corroem;
Drogas travam músculos.
Armas, ilegais;
Forca perde o laço;
Gás cheira demais;
Viva, que é mais fácil.





Razors pain you;
Rivers are damp;
Acids stain you;
And drugs cause cramp.
Guns aren’t lawful;
Nooses give;
Gas smells awful;
You might as well live.

menos que um: wordsworth, palavra digna

Lendo e.e. cummings (suas inconferências traduzidas aqui em Portugal) encontrei um poema de William Wordsworth, que cummings cita no fim do primeiro capítulo. Intimações da Imortalidade A Partir De Lembranças Da Infância (Ode on Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood), o nome do longo poema do qual traduzi apenas alguns versos - os que me interessaram de verdade, devo dizer. Tentei reproduzir um tanto da sonoridade e dos padrões de rima do original, com evidente fracasso - fracasso do qual a tradutora portuguesa se esquivou simplesmente não rimando nada. Seguem as versões.

Pois cantem, aves, cantem, cantem um alegre som!
Deixem que os cordeiros dancem
Dos tamborins o tom!
Nós, em pensamento, estaremos com vocês,
Que cantam e que dançam,
Que os corações alcançam
De Maio o tempo bom.
(minha tradução)


Then, sing, ye birds, sing, sing a joyous song!
And let the young lambs bound
As to the tabor's sound!
We, in thought, will join your throng,
Ye that pipe and ye that play,
Ye that through your hearts to-day
Feel the gladness of the May!
(original de Wordsworth)


Então cantai, aves, cantai, cantai uma canção alegre!
E deixai que os jovens cordeiros saltitem
Ao som do tamborim!
Nós em pensamento juntar-nos-emos à vossa multidão.
A vós que cantais e tocais,
Que através dos vossos corações hoje
Sentis a alegria de Maio!
(tradução de Cecília Rego Pinheiro)



segunda-feira, 6 de maio de 2013

menos que um: gary snyder, japão e primavera

Tenho sono, é primavera, estamos em maio, não durmo, quis traduzir. Não vou falar sobre Gary Snyder: deem uma olhada no link e descubram por vossa conta. A única coisa que adianto é seu papel definitivo para muito do que sou hoje - ou seja, nada, mas não por culpa dele. Budismo, Zen, poesia, geração beat e tradução. Japhy Ryder - sua versão romanceada de Os Vagabundos Iluminados, de Jack Kerouac - é personagem sempre presente em meu imaginário. "É impossível cair de uma montanha".


Uma noite primavera em Shokoku-ji

Oito anos atrás este mês
Passeamos sob a flor de cerejeiras
Na noite de um pomar em Oregon.
Tudo que eu queria então
Já esqueci, menos de ti.
Aqui nesta noite
Num jardim da capital antiga
Sinto o fantasma trêmulo de Yugao
E lembro teu corpo fresco
Nu dentro das vestes de algodão.



Eight years ago this May 
We walked under cherry blossoms 
At night in an orchard in Oregon. 
All that I wanted then 
Is forgotten now, but you. 
Here in the night 
In a garden of the old capital 
I feel the trembling ghost of Yugao 
I remember your cool body 
Naked under a summer cotton dress. 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

menos que um: william carlos williams outra vez

E o mesmo poema. Recebi algumas críticas e sugestões de quem respeito muito em tradução e pronto, cá está uma outra tentativa, com alguns versos alterados, alguns ritmos e ordens, algumas coisas. A caixinha de críticas e sugestões ainda está - sempre estará - aberta.


Lamento

Chamam-me e eu vou.
Passou da meia-noite,
a estrada congelada, pneu
crava no asfalto
a neve em duro rastro.
A porta abre.
Sorrio, entro e
descalço o frio.
Vejo a mulher inchada
deitada em seu lado da cama.
Ela está doente,
talvez vomitando
ou então no sufoco
para dar à luz
o filho dez. Viva! Viva!
A noite apaga as luzes
do quarto em que se trepa,
pela persiana emana o sol
um douradíssimo filete!
Tiro o cabelo de seus olhos
e assisto, em compaixão,
sua desgraça.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

menos que um: william carlos williams, raul fiker e lamentação

Eu sempre gostei dos beats (Jack Kerouac, Ginsberg, Gary Snyder e por aí afora). Na faculdade, uma vez, Raul Fiker deu uma aula sobre filosofia e eles, os poetas malucos marginais e outsiders. No meio da aula entrou uma cachorra viralata, porta adentro, e ilustrou o que dizia o professor. Fiker falou "Vejam só, uma outsider". Ela era.

Na mesma aula ouvi falar sobre William Carlos Williams, uma espécie de pai antecessor dos poetas beat. A história era assim:

- Quando William Carlos Williams estava pra morrer, na cama do hospital, os beats todos se reuniram em volta, esperando o velho falar. Estavam todos lá, o doente ia morrer e eles estavam ansiosos para saber as últimas palavras, a poesia derradeira, qualquer coisa assim. O velho estendeu a mão, apontou o indicador pra janela e sentenciou: "Lá fora só tem filho da puta".

Se é verdade ou não, não sei. Vou defender essa história até a morte (em parte porque é muito boa, iconoclasta, em parte porque se ajunta às lendas de Raul Fiker - sério, são muitas e todas muito boas).

Cá está, portanto, uma traduçãozinha do visionário que sabia só existir, cá fora da janela, filhos da puta.

Lamento

Chamam-me e eu vou.
Passou da meia-noite,
a estrada congelada, pneu
crava no asfalto
a neve em duro rastro.
A porta abre.
Sorrio, entro e
descalço o frio.
Vejo a mulher inchada
deitada em seu lado da cama.
Ela está doente,
talvez vomitando
ou então no sufoco
para dar à luz
o filho dez. Viva! Viva!
A noite apaga as luzes
do quarto em que se trepa,
pela persiana emana o sol
um douradíssimo filete!
Tiro o cabelo de seus olhos
e assisto, em compaixão,
sua desgraça.





They call me and I go. 
It is a frozen road 
past midnight, a dust 
of snow caught 
in the rigid wheeltracks. 
The door opens. 
I smile, enter and 
shake off the cold. 
Here is a great woman 
on her side in the bed. 
She is sick, 
perhaps vomiting, 
perhaps laboring 
to give birth to 
a tenth child. Joy! Joy! 
Night is a room 
darkened for lovers, 
through the jalousies the sun 
has sent one golden needle! 
I pick the hair from her eyes 
and watch her misery 
with compassion. 

[e aqui, uma primeira versão da tradução tentada

Lamento


Chamam-me e eu vou.
Passou da meia-noite,
a estrada congelada, pneu
crava no asfalto
a neve em duro rastro.
A porta abre.
Sorrio, entro e
sacudo fora o frio.
Eis uma grande dona
em seu lado da cama.
Ela está doente,
talvez vomitando
ou então no sufoco
para dar à luz
o filho dez. Viva! Viva!
A noite é escuro
quarto para amantes,
pela persiana emana o sol
um douradíssimo filete!
Tiro o cabelo de seus olhos
e assisto sua desgraça
em compaixão.]

quarta-feira, 1 de maio de 2013

menos que um: a porta, robert creeley em uma estrofe

Dei de cara com uma estrofe de Robert Creeley, hoje, na página inicial do Poets.org. Gostei e traduzi. É do poema The Door, que por acaso não encontrei nesse site, mas em outro (o Poetry Foundation, aqui: The Door)

Robert Creeley, na mesma levada de William Carlos Williams, Ezra Pound e outro poetas revolucionários do período, parece ter influenciado a mentalidade do meio do século passado, na poesia americana. Ainda não sei, mas essa estrofe inicial tem uma imagem bastante forte e uma sonoridade dispersa que tentei reproduzir. Menos que um bom trabalho.

foto por Michael Romanos
Senhora, não me expulse
por divagar. Minha índole
é um pantanal de confissões
a terminar. Senhora, eu sigo.


Lady, do not banish me  
for digressions. My nature  
is a quagmire of unresolved  
confessions. Lady, I follow.